Abaixo trechos de um texto escrito em 2007 pelo fotógrafo Ivan de Almeida sobre o olhar fotográfico e que achei muito interesante.
"De conversa em conversa, os assuntos vão surgindo. Conversando com um amigo fui procurar uma imagem da escultura do Henry Moore chamada O Rei e a Rainha Sentados que vi aqui no Rio no Paço Imperial. Procurando, caí em um artigo do Artur Rozestraten no site Vitruvius sobre o desenho e nesse artigo há um comentário sobre coisas ditas pelo Henry Moore atribuindo ao ato de desenhar o condão de romper a passividade do olhar, sua acomodação.
Sempre encontrei muitas semelhanças entre desenhar e fotografar, e ao ler esse artigo ele deu conta de algo que eu percebia, mas nunca definira ou delimitara: que ao fotografar é exatamente isso o que acontece, o abandono do olhar sem ver, do olhar utilitário e automático por nós usado para nos movermos e atuarmos no mundo. Fotografar impõe um olhar analítico, um olhar selecionador, um olhar julgador e não um olhar distraído.
Desenho desde menino. Fotografo desde adolescente. Quem desenha conhece bem o fenômeno de errar as proporções da coisa desenhada. Qual a razão para isso? Uma das razões é exatamente o foto do olhar não estar sendo usado analiticamente. A falta de análise, quando desenhamos algo que está na nossa frente, é a verdadeira responsável pelos erros de proporção. Não é errado dizer: aprender a desenhar é aprender a analisar as formas. Quando o desenho é ensinado sistematicamente a alguém, grande parte do ensinamento consiste em processos de análise, em métodos para avaliar as medidas relativas de alguma coisa como está sendo por nós vista, métodos de analisar as inclinações das linhas dos objetos, métodos de decompor um objeto em formas mais simples.
Nos últimos dez ou quinze anos algumas técnicas novas foram usadas para evitar o olhar preguiçoso e forçar a análise, e essas técnicas são chamadas "desenhar com o lado direito do cérebro". Uma dessas técnicas consiste em colocar um objeto de cabeça para baixo para ser desenhado, pois ao fazer isso o desenhista não pode apoiar-se na representação convencional do objeto e é obrigado a realizar um esforço analítico.
E na fotografia? A mesma coisa acontece na fotografia, mas fica um pouco ocultada pelo fato da câmera "desenhar bem". De fato, qualquer fotografia feita em modo automático, por exemplo, apresenta um desenho do objeto fotografado convincente, correta sob o ponto de vista da representação convencional. Enquanto no desenho a disciplina do desenhista, o rigor de sua análise determinam a correção da representação, na fotografia a correção da representação parece obtida desde sempre, ela é quase a plataforma mínima da fotografia.
Mas a coisa ressurge com outro nome. Os fotógrafos criaram um conceito mais ou menos impreciso e o nomearam "Olhar Fotográfico". O nome é muito bom, mas a compreensão do que seja nem tanto. Esse olhar fotográfico é normalmente tido pelos fotógrafos como uma espécie de dom ou de talento, mais ou menos desenvolvível com a prática mas aparentemente uma instância distinta dos ensinamentos de técnica operativa da câmera fotográfica e da técnica de composição. Esse olhar fotográfico imaginado seria, para os que pensam assim, algo capaz de superar totalmente a técnica compositiva (vista como uma muleta para quem não tem o olhar fotográfico) e algo apenas instrumentalizado pela técnica operativa, essa um saber inerte, passivo, sem capacidade de criar lógicas visuais mas tão somente servir ao olhar fotográfico.
O bom nome, como veremos mais tarde, termina assim sendo um biombo ocultando as questões verdadeiras, quais sejam o relacionamento das instâncias técnicas com o ato fotográfico e, principalmente, a educação do fotógrafo para superar a preguiça do olhar. É como se o tal Olhar Fotográfico fosse inato ou algo da personalidade e destacado da prática da fotografia, algo pessoal que, de repente, havendo uma câmera e uma técnica, aflorasse, mas sempre estando latente e pronto antes mesmo da experiência fotográfica. É assim, aliás o pensamento majoritário sobre as artes, algo da esfera do dom e não da técnica ou do trabalho. Algo que é inspiração.
Contudo, assim como aprendemos a desenhar treinando em nós uma maneira de analisar a cena e traduzi-la em uma convenção bidimensional de representação, e essa análise é muito bem definida em seus procedimentos consistindo em medir, comparar, avaliar tamanhos relativos e inclinações, e sobretudo, evitar que o olhar preguiçoso empregado na vida normal contamine o desenho, aprendemos também o Olhar Fotográfico fotografando e treinando como analisar a cena em função da representação desejada. Na verdade, adquirimos o Olhar fotográfico quando aprendemos a olhar para as coisas como uma câmera fotográfica; analisando o DOF, analisando um mundo contido em um retângulo definido, analisando a luz e a reação da superfície sensível a ela. Nosso pensamento produz um prognóstico da captura.
O olhar fotográfico é inseparável dos atos analíticos que empregamos para definir a fotografia. Ele não tem outra natureza a não ser a antevisão dos atos fotográficos a partir de uma compreensão do aparelho. A relação entre Olhar Fotográfico e técnica fotográfica ou técnica de composição é uma relação como a cara e a coroa de uma moeda. Não é possível fazer uma moeda só com um lado. Não existe o Olhar fotográfico sem a introjeção da experiência fotográfica e sem o ato de análise fotográfica. É como um dado. Podemos olhar o dado de seis lados diferentes, mas termos somente o dado como coisa completa de seis lados do mesmo objeto. Experiência fotográfica (técnica) e Olhar fotográfico são a mesma coisa, somente que cada uma dessas expressões simboliza uma categoria analítica. Mas de fato o tal olhar acontece como uma conjugação de escolhas técnicas, e é adquirido pela experiência de fazer escolhas técnicas até o ponto em que sem uma câmera na mão podemos saber como uma câmera, com uma determinada lente, capturaria um assunto. Diversas estruturas formais da fotografia são estranhas à vista humana desarmada; desfoques, silhuetas, DOF curto, perspectiva rectilinear, nada isso é nosso. Tudo isso é aprendido pelo uso da máquina ou pela contemplação do universo de imagens fotográficas circulantes no mundo. Aprendemos a fotografar vendo fotografias e entendendo sua forma de fazer. Consta que o maior de todos, o Henry Cartier-Bresson, costumava olhar suas provas de cabeça para baixo para não ser perturbado pela coisa retratada ao analisar a composição. Olhando de ponta-cabeça ele via menos a coisa –o referente- e mais o jogo visual de linhas, massas claras e escuras, etc. É muito interessante como isso guarda semelhança com o desenho "com o lado direito do cérebro". Separa a representação da análise formal tem sido, para todas as gerações de artistas visuais, o grande desafio. A fotografia é feita de um objeto objeto, mas constitui uma coisa própria, regida por leis próprias, e olhar fotográfico é análise formal, é tornar consciente a percepção visual, e aplicar essa consciência ao enquadrar o mundo no retângulo".
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